Geral Opinião

EUA à Beira de um Golpe de Estado

Na minha perspectiva ontológica, o envio da Guarda Nacional para cidades governadas pelos democratas não é apenas uma decisão política ou uma medida de segurança, trata-se de uma transformação profunda da forma como o Estado se apresenta e como os cidadãos existem dentro dele. Quando o poder se manifesta através da força militar em territórios civis, o Estado deixa de ser mediador da vida democrática e passa a ser vigilante e disciplinador, a presença de tropas nas ruas transforma o espaço público e redefine a relação entre autoridade e liberdade.

O medo que se instala deixa de ser apenas um sentimento individual e torna-se um modo de existência social, quando pessoas evitam sair à noite, evitam manifestar-se ou falam menos do que gostariam, o medo passa a organizar a vida coletiva. A democracia, que deveria viver da abertura e da participação, começa a funcionar segundo a lógica da contenção.

O espaço público, que tradicionalmente é o lugar onde o cidadão se afirma e se expressa, converte-se num espaço vigiado, o cidadão passa a existir mais pelo que evita dizer ou fazer do que pelo que afirma, o silêncio torna-se o sinal mais claro de que a vida democrática está a encolher, não porque alguém decretou, mas porque a presença permanente do poder armado impõe esta realidade.

Na minha opinião, estas movimentações da Guarda Nacional em cidades democratas com grande autonomia podem ser interpretadas como quase um golpe de Estado constitucional. Ao intervir diretamente em estados que têm autoridade própria, o poder federal está a usurpar competências que não lhe pertencem e a enfraquecer a autonomia estadual. Nunca se tinha utilizado esta forma antes, para quem já tentou um golpe de Estado, esta é uma forma inédita de o fazer, usar propositadamente as Forças Armadas para “invadir” territórios que Trump considera inimigos, porque, para ele e para o MAGA, os adversários políticos são tratados como inimigos.

Um estado policial, na minha análise, nunca é um fim, é sempre uma etapa para um estado de sítio, quando a exceção se normaliza, quando a presença militar se torna rotina e o medo orienta comportamentos, a passagem para o estado de sítio deixa de ser uma rutura e passa a ser a formalização do modo de existir que já foi imposto.

O que observo é que não se está a corroer apenas a política do dia a dia, a erosão atinge a própria condição de cidadania e a estrutura ontológica da vida democrática, o cidadão deixa de ser sujeito da polis e transforma-se em objeto do controlo, é nesta transição silenciosa, quase imperceptível, que reside o maior perigo.

Se isto se normalizar, a democracia americana deixará de ser apenas ameaçada, terá deixado de existir tal como a conhecíamos. Como ex-militar, reconheço a diferença entre dissuasão e intimidação nas ruas, e o que vejo não é dissuasão: é intimidação, e intimidação em democracia é sempre um caminho perigoso.

Nuno Pereira da Silva

Coronel na Reforma

Acerca do autor

Nuno Pereira da Silva

Coronel de Infantaria na Reserva

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