Quis o meu destino que entrasse no mundo do trabalho aos onze anos de idade, logo após a conclusão da instrução primaria, feita nos quatro anos, em 1961. Era uma fuga ao mundo paupérrimo da minha aldeia beirã, cuja agricultura de subsistência não dava para enganar a fome nas famílias com “ninhadas de filhos” (na minha eramos seis crianças e com o pai doente e internado).
No final de 1962, um familiar trouxe-me para Lisboa e arranjou-me um emprego para marçano numa drogaria (marçanos eram rapazes que vinham «da terra». Tinham 13/14 anos e carregavam às costas um cabaz, dum tamanho que parecia submergir o marçano e a sua função era a entrega domiciliária dos artigos que se vendiam nas mercearias, drogarias, etc). Eram empregos acessíveis a crianças e jovens da província porque funcionavas num regime de “cama, mesa e roupa lavada (CMRL) e, nem sempre, dum mísero ordenado (o meu primeiro ordenado era de 120$00 escudos, (sensivelmente 60 cêntimos do euro). Normalmente, arranjavam-se este tipo de empregos, por recomendação familiar ou pelos anúncios no Diário de Notícias (DN). O candidato contactava (não havia telemóveis) ou apresentava-se na loja e era ou não selecionado, tal como o marçano poderia não aceitar.
Os meus dois empregos subsequentes, pois no primeiro estive apenas quatro meses, porque, além de ser também criado para todos os serviços (lembro que as raparigas vinham da província para “criadas de servir”), o patrão ainda gozava com um miúdo de doze anos acabado de vir da província e quase como um “ET” na Lisboa de então. Alma caridosa, sabendo da minha situação de escravatura, sim, poderei chamar-lhe isso no terceiro trabalho com CMRL, o pior que tive durante um mês e meio, arranjou-me um emprego num regime mais humano e sem a “prisão” das condições de CMRL, mas só possível porque esse familiar, meu “tutor na cidade”, me alojou num sótão, com outros hóspedes, mas pagando eu 100$00/mês (0,50 cts).
A patroa era dona de duas unidades muito conhecidas no ramo de café/pastelaria/restaurante na baixa de Lisboa, iniciando-me, com quase quinze anos, como “paquete” (tinham que ser crianças (!)) e depois passei para “balconista” e terminei como “copeiro”, essencialmente, a “lavar pratos”, mas não só. Muitos eu lavei, pois não havia máquinas de lavar louça. Muitos portugueses
emigraram e estudantes nas férias de verão, iam para a europa lavar pratos.
No meu subconsciente, estava guardado o sonho de estudar (três colegas de ano da escola da minha aldeia beirã, iriam estudar para a cidade, capital do distrito a dez quilómetros, que necessitaria de hospedagem e alimentação) e eu chorei porque o meu destino estava traçado, porque após a conclusão da primária esse sonho foi castrado por impossibilidade de vária ordem, tal como o foi aos treze anos, já em Lisboa.
Contudo, aos quinze anos e ainda “copeiro”, matriculei-me na escola comercial, no curso noturno (só havia escolas técnicas noturnas e o acesso exigia a primária feita, ter quatorze anos ou mais feitos ou a fazer e trabalhar). Não me resignei naquela situação de copeiro e com um ano de clandestinidade e duro sacrifício, ninguém ali sabia que eu já tinha frequentado o primeiro ano, matriculei-me no segundo ano dos seis do curso comercial (em regime diurno, o acesso exigia o Ciclo Preparatório de dois anos para os três anos do Curso Comercial).
Trabalhar e estudar como copeiro, com um horário das nove às nove da noite e seis dias da semana, era algo desumano. Comecei então à procura, pelo DN, dum emprego para escritório.
Convocavam-me para as entrevistas, mas quando me diziam qual era o ordenado, eu recusava porque era insuficiente para sobreviver, pois não tinha ajudas familiares. Um dia, um empresário espanhol, com um pequeno escritório em Lisboa, ofereceu-me 700$00 (3,5 euros/mês) e eu aceitei, apesar de saber que teria que fazer duros sacrifícios. Por exemplo, pagar cem escudos pela cama no sótão, saltar refeições, andar a pé, etc. Mas continuava a responder a anúncios, comprando o DN, na procura dum emprego com melhores condições, mesmo que essa fosse apenas uma melhoria salarial de cinquenta escudos (0,25 cts).
A este seguiram-se mais e em meados de 1968 (com dezoito anos de idade e já com o terceiro ano concluído) fui selecionado, num processe de resposta pelo DN, para Praticante de Escritório num Grupo Empresarial com sede e serviços em Lisboa e fábricas em Coimbra, Ílhavo e Gaia. Além dos 900$00 de ordenado, recebia subsídio de refeição e de estudante, requisito este para ser admitido na empresa. Eram estímulos concedidos àqueles que queriam trabalhar e “estudar à noite” e eu assim fiz até aos 32 anos, com três anos de permeio no serviço militar obrigatório (de Out. 1971 a Out.1974).
Permaneci no Grupo empresarial mais de dezoito anos, saindo aos trinta e seis anos, penalizado por ter “nascido e crescido” profissionalmente naqueles “Grupo Empresarial”, porque aos “santos da casa” não lhes são, normalmente, reconhecidas as mesmas competências daqueles que vêm de fora.
Por mais três vezes procurei emprego através de anúncios, agora do Jornal Expresso onde eram publicados os anúncios de oferta de emprego para “Quadros Médios e Superiores”. Reformei-me no meu último emprego, obviamente, da empresa onde estive os meus últimos 23 anos profissionais e que fui sempre “trabalhador por conta de outrem” 50 anos, mas apenas com 47 anos legalmente e com as contribuições para a Segurança Social, isto é, apenas na idade legal dos 14 anos e a partir do meu quarto emprego.
Por que me veio a ideia de passar à escrita estas memórias? Por causa deste caso, com contornos de falta de ética, para não lhe chamar outro nome, da senhora ex-Secretaria de Estado do Tesouro Alexandra Reis (AR). Independentemente da legalidade ou não dos 500.000 €, a que acresceram encargos por conta da TAP, elevando para cerca de 750.000 € o custo da “rescisão por mútuo acordo”, camuflando um despedimento ordenado pela presidente da empresa. AR foi contratada em Set. 2017, para exercer funções de direção no Departamento de Compras, como TPCO e, em Dez.2020, foi nomeada para o Conselho de Administração (CA).
Em Fev. 2022, a empresa anunciou que AR tinha apresentado a sua renúncia ao cargo que, sendo da iniciativa da própria, não conferiria direito a qualquer indemnização, mas logo cerca de três meses depois, o Governo nomeou AR para Presidente do CA da NAV-Naveg. Aérea de Portugal.
A ascensão de AR continuava e cerca de cinco meses depois foi nomeada Secretária de Estado do Tesouro (SET). E é neste cargo que é demitida pelo Ministro das Finanças Fernando Medina, depois de ter vindo a público todo este “imbróglio”. Por que razão desde a entrada na TAP até à nomeação como SET não procederam os respetivos responsáveis ao estudo e análise do seu “currículo profissional”?
Há investigações em curso acerca da indeminização recebida e da responsabilidade dos decisores envolvidos, mas para além disso, há responsabilidades politico-ministeriais do percurso de AR e mesmo que a decisão em exigir a renúncia ou demissão tenha sido de responsabilidade da empresa, logo considerando que foi escasso o poder decisório do Estado, os ministros da tutela (na nomeação para a NAV, da tutela de Nuno Santos e na escolha para Sec. de Estado do Tesouro, escolhida por Fernando Medina), tinham conhecimento da indemnização? Por não terem tido conhecimento das condições que levaram AR a sair da Administração da TAP, a nomearam para cargo relevante na NAV e posterior escolha para SET? Fica a pergunta, mas estranha-se que para estes cargos tão relevantes os responsáveis se tenham esquecido de “pormaiores” do currículo da sortuda senhora.
Nunca senti inveja daqueles que progrediram nas carreiras profissionais, desde que lhes reconhecesse mérito e competências para os cargos. Se não, sentia que não bastava o mérito, para subir. O que eu e muita gente como eu, tivemos que passar nos processos de seleção para empregos, se não tivessem “cunhas ou padrinhos”, além das “famílias partidárias” (os “boys” e as “girls” partidárias) existentes nesta democracia com muitas brechas que a minam, perigosamente.
Serafim Marques
Economista (Reformado)
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