Fernando Seara
À VOLTA DA LAREIRA
Lá fora a chuva bate na janela. Forte, fortemente. Ao fundo o mar, o mar
desta Ericeira singular, vê-se – e sente-se – que está com ondas altas. O
som da sua relativa fúria ecoa e o abraço entre o céu bem cinzento e a
espuma imensa do mar é um abraço que nos aporta chuva intensa e a
água não respeita o seus canais e invade as ruas, os passeios, as praças. E
à lareira, que nos aquece, chegam livros que estão, num monte
organizado, à espera da sua vez para uma leitura atenta. Um deles, de
Sebastião Diniz – da editora Mar de Letras – leva-nos á “Ericeira, um lugar
na literatura”. Lá estão textos que referenciam a Ericeira de Eça de
Queirós e Ramalho Ortigão, de Fernando Namora e de António Lobo
Antunes, de Pinheiro Chagas e Raul Brandão, de Álvaro Guerra e Rocha
Martins, entre outros. É uma recolha que nos aquece a alma. Na lareira
quebram os nacos de madeira. Na alma cresce a alegria, mesmo que
recente, de partilhar alguns momentos, certas situações, determinados
lugares e, permitam-me, os sabores e as cores desta vila em que o azul e o
branco se casam e entrelaçam, se aproximam e se diferenciam, se
motivam e se acariciam. E, sempre, escutando as vibrações que a história
regista, como aquele que reporta a partida da Família Real para o exílio
logo após a proclamação da República. E a este propósito recordei um
delicioso naco de um dos volumes do Diário de Miguel Torga – um médico
ilustre, um escritor extraordinário e um narrador singular – que dá nota da
sua presença na Ericeira. No volume décimo quarto e a propósito do seu
dia 5 de julho de 1983 na Ericeira escreveu: “A inanidade da História!
Terminou aqui uma época da nossa voda coletiva, com a família real a
embarcar para o exílio. E só uma lápide discreta o recorda timidamente no
portal tímido de uma capelinha tímida. Bem tentei refazer, a partir da
inscrição, o dramatismo dessa hora, o desgarrado adeus de uma
monarquia multissecular. O sol doirava a vila de luz austral, o mar
quebrava monotonamente contra a ravina, as pessoas circundavam no afã
rotineiro. A vida continuava no seu pragmatismo obstinado. Não há
dúvida: o esquecimento é o único espaço onde os sucessos se eternizam.
A memória é a faculdade mais precária que temos. E, no entanto, é só
nela que o pretérito joga o seu futuro”. E estando pela Ericeira, no calor da
lareira, e sem o sol que o grande Miguel Torga vislumbrou, continuamos a
sentir que há textos onde há amor e há paixão e onde não há a “erosão
das marés” já que a memória dos homens e das mulheres “não é frágil”. E
com Miguel Torga também se enriquece, e muito, a presença da Ericeira
na contemporânea literatura portuguesa!
Por Fernando Seara
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