Uma conversa com um jovem artista são-tomense reabre feridas antigas, e revela as estranhas voltas da História, que tantas vezes se repete em ciclos de sonho e de sangue.
Senti, no dia em que o meu filho mais velho completou trinta e um anos, a nostalgia aliada a uma enorme saudade de São Tomé e Príncipe, a terra onde estava em cooperação quando ele nasceu.
Na véspera do seu nascimento, fui evacuado da cidade capital de São Tomé com um falciparum F8, paludismo cerebral. Não me matou por milagre, mas catalisou o aparecimento da minha diabetes crónica, companheira de tantos anos.
Em Portugal, fui tratado nas infectocontagiosas do Hospital Militar Principal, uma referência da Instituição Militar entretanto extinta. Gostamos de acabar com os nossos centros de excelência como qualquer país emergente que despreza o conhecimento e a Ciência em favor de modas e vaidades passageiras.
A nostalgia levou-me a ligar para um jovem pintor são-tomense. Dias antes, tinha estado no atelier de um famoso escultor do arquipélago, agora radicado em Portugal, de quem sou amigo e admirador. O seu trabalho é profundo, telúrico, ligado às raízes da terra e às tensões do mundo.
Do outro lado do Atlântico Sul, atendeu-me Kwame de Sousa, o pintor emergente cujo trabalho sigo no Instagram, embora não o conheça pessoalmente. Com um português quente dos trópicos, iniciámos uma conversa belíssima sobre a identidade africana. Falou-me da obra que estava a fazer uma peça com vinte metros de comprimento, encomendada pelo Estado são-tomense por ocasião do cinquentenário da Independência. A obra versava sobre o Tchiloli.
O Tchiloli é uma representação teatral de rua em que Carlos Magno, Imperador do Sacro Império Romano Germânico, preside a um julgamento. É uma manifestação musical e de bailado com raízes na tradição oral, que sempre me intrigou. Nunca compreendi a ligação entre Carlos Magno e a cultura são-tomense, mas reconheço nela um símbolo profundo de apropriação cultural e resistência.
Durante a conversa, perguntei-lhe pelo Cobó, o ideólogo do golpe de estado que se desenrolou enquanto eu lá estava. Aquele episódio marcou-me profundamente, tanto na minha vida profissional como militar. Quando o golpe falhou, vi-me no papel inesperado de mediador. Consegui que Cobó viesse para Portugal, afastando-se da ilha por uns anos. Ironias da vida: viria a tirar cursos de formação militar em território português.
Foi a minha primeira mediação de um conflito. Recordei-me do sucesso, mas também dos momentos de angústia. À entrada do Quartel-General das Forças Armadas de São Tomé, um tenente de Engenharia revoltoso que tinha tomado o edifício apontou-me uma arma à cabeça e gritou-me:
— Socialismo ou morte!
Num pânico interior, respondi sem hesitação, mas com voz trémula:
— Socialismo.
Com emoção, soube por Kwame que Cobó era seu amigo íntimo, quase como um pai. E que o tenente que me ameaçara viria a morrer dois anos antes era o cabecilha de mais um golpe de Estado, o derradeiro para si. A História, essa senhora de memória curta, voltou a repetir-se no mesmo solo, com os mesmos fantasmas.
São Tomé é hoje mais do que uma memória. É uma ferida aberta, uma página onde o caos se inscreve com tintas de paludismo, pintura, diplomacia e sobrevivência.
Nuno Pereira da Silva
Coronel na Reforma

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