Por Fernando Seara
RESISTÊNCIA E TRADIÇÃO
Sei bem que sou quase um “estrangeiro” na Ericeira. Aqui resido há
poucos anos. Fui conhecendo os que sentem, desde o berço, a Ericeira, o
seu mar, o seu “jogo da bola”, os seus emblemáticos restaurantes, os seus
“ouriços”, as suas lojas, algumas centenárias, de referência, a sua bonita
Igreja, as suas ruas estreitas.
Fui, umas vezes bem disfarçado, ver jogos de futebol e senti um “amor inquebrantável” ao clube e às suas cores. E com um linguajar que pede meças ao mais puro dos vernáculos… em puro português.
Estabeleci laços de fraternidade com “gente boa” da Ericeira,
com jovens humildes e solidários e ao mesmo tempo arriscados e
dedicados empreendedores, e com “figura” que marcam este tempo
histórico da Ericeira. Tempo em que sente localismo assumido e
globalismo vivido. Tempo em que o surf, e as suas múltiplas atratividades,
fez da Ericeira um destino quase que permanente e afastou aquela
sazonalidade que era um marco que a história regista.
Mas hoje, como há mais de cem anos, há festas desportivas no Parque de Santa Marta ou
realiza(ra)m-se trabalhos da Ponte da Carvoeira, “na Estada de Sintra”!
E a “procura de casas” se era uma realidade em Junho de 1910(!) é uma
acrescida realidade em Outubro de 2018. E passaram-se, assim, duas
guerras mundiais, a queda do Muro de Berlim, a imensa abertura chinesa
ao Mundo e algumas intervenções de diferentes “troikas” em Portugal.
A minha geração conheceu, pelo menos, três “ajudas externas” e de forma
bem aguda e severa. Mas nesta Ericeira em que o azul das casas se
confunde com o azul, por vezes quase esverdeado do mar, – recordando,
desculpem a ousadia, e por vezes, quase os mares das Caraíbas – há
símbolos de resistência. Há editoras que resistem e persistem. Há gente e
palcos de cultura que se afirmam e insistem. Há livros que se editam e que
merecem ser lidos. Com a calma que este mar exige. E a Editora “Mar de
Letras”, marco de resistência (como aliás este jornal), merece este
testemunho deste quase que “estrangeiro”. Sei bem o que é ser “jagoz”!
Também percebi, quase de imediato, que importa conhecer a Ericeira e as
suas gentes. E nada como percorrer os livros da “terra” com os
sentimentos dos seus naturais. E foi, assim, que devorei – sim devorei! – a
correspondência de Jaime Lobo e Silva para o semanário “Mala da
Europa” e que a “Mar de Letras” editou com o título “A vida quotidiana
na Ericeira nos começos da Primeira República”. Há relatos de ontem que
são relatos de hoje. Os mesmos lugares e as mesmas festas. Porventura
até a sinalização de novas chegadas e de “velhas partidas”! Mas o que fica,
o que fica mesmo, são relatos que retratam vidas que constroem com
orgulho a sua terra, a vossa Ericeira.
Eu sei bem o que “é ser do lugar”.
E, mesmo nesta cativante hospitalidade,
– que vai do Zé ao Igor, do Babá à Inês, do Mário ao Domingos, da Susana ao António, do João ao Pedro – , não deixo de “devorar” livros , de buscar “papéis velhos” e de assumir, como há cem anos, que o futuro não pode contrariar a tradição.
E este desafio já é de todos. Os que são de “cá” e dos que vieram “até cá”!
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