Numa entrevista sobre o estudo que avalia o impacto da Reserva Mundial de Surf da Ericeira nos últimos dez anos, Juanma Murua, responsável pelo Estudo de Impacto da Reserva Mundial de Surf da Ericeira nos últimos 10 anos, responde com um discurso direto e sem rodeios.
Na cerimónia de encerramento do Ericeira WSR+10, agendada para o dia 24 de Fevereiro, à tarde na Casa de Cultura Jaime Lobo e Silva, pelo que existe a possibilidade de se combinarem entrevistas, Juanama Murua irá apresentar este estudo.
Juanma Murua, consultor na área da gestão de cidades e território, foi o responsável pelo estudo realizado no âmbito das celebrações do 10º aniversário da Reserva Mundial de Surf da Ericeira (RMSE) sobre a avaliação do impacto desta nos últimos dez anos. Um dos principais legados do projeto europeu EWSR+10, promovido pelo Ericeira Surf Clube (ESC) ao longo de mais de um ano, passará muito pela avaliação do impacto das atividades de surfing (e associadas) ao longo desta década, aqui presente e explorada em quatro dimensões distintas: ambiental, económica, social e imagem. Nesta entrevista, Murua fala sobre os aspetos luminosos e também sobre os lados lunares da Reserva, apontando caminhos que poderão contribuir para a tornar mais sustentável.
Quais foram as maiores dificuldades com que se deparou durante a realização deste estudo? A principal terá sido a escassez de dados específicos da Ericeira?
Sim, a falta de dados sobre a Ericeira foi a maior dificuldade. Em estudos como este, é essencial o acesso a uma grande quantidade de dados sobre as diferentes áreas de impacto: ambiental, social, desportiva, económica ou de imagem. Em primeiro lugar, estes dados tão diferentes geralmente não estão disponíveis no mesmo local ou são sequer públicos sendo geridos por diferentes administrações e agentes. É preciso identificar a fonte dos dados, solicitá-los, aguardar pela resposta e acesso aos mesmos. Além disso, as principais bases de dados de indicadores socioeconómicos e ambientais existentes focam-se na dimensão municipal, e não à escala de freguesia ou grupo de freguesias, como é o caso do território costeiro do município de Mafra que integra 4 freguesias diferentes, sendo que a Reserva atravessa 3 delas. É por isso que grande parte dos dados utilizados são referentes ao município de Mafra o qual, sendo tão vasto, dilui o efeito e não permite que se obtenha uma imagem tão clara e específica acerca do impacto da EWSR.
Quais são, no seu entender, as principais forças e fraquezas da EWSR?
Eu diria que a principal força é o reconhecimento da EWSR pelos residentes locais. É também reconhecida pelos turistas, e isso é bom, mas parece-me que o feedback positivo dos residentes oferece um grande potencial para geração de capital social na Ericeira. Como ponto fraco, gostaria de salientar a falta de uma figura jurídica associada à EWSR. Em vários trabalhos sobre a Ericeira que consultámos ao longo do processo de elaboração deste estudo, esta fragilidade é mencionada, mas a verdade é que nunca chegou a ser concretizada. Seria importante ter uma figura legal que facilitasse e garantisse a gestão da área de forma sustentável. Também parece muito relevante a existência de uma ferramenta de gestão económica para a EWSR, de fora a garantir uma exploração adequada do nome EWSR promovendo a sua incidência no desenvolvimento do próprio território. Esta tem sido uma questão valorizada negativamente pelos moradores.
houve alguns problemas associados ao rápido crescimento, mas parece-nos que tenham sido baixos em relação aos ganhos obtidos
De que forma este estudo deverá/poderá assumir-se como uma ferramenta de acompanhamento e monitorização dos impactos do surf na região da Ericeira?
Acreditamos que os indicadores utilizados no estudo possam formar um quadro orientador que permita doravante o devido acompanhamento anual para efeitos de monitorização e avaliação futura. A nossa pesquisa foi simples mas permite que, partindo desta, possa ser repetida anualmente até porque muitos dos dados usados são provenientes de bases de dados públicas. Além disso, estou convicto que, com a experiência, estes dados e indicadores possam ser bastante aperfeiçoados com o objetivo de melhor compreender o impacto do surf na Ericeira e, logo, maximizar os impactos positivos e reduzir custos em todas as áreas.
Neste estudo analisou potenciais custos e benefícios no que toca a impactos em quatro âmbitos: social; ambiental; económico e imagem – como avalia, globalmente, os impactos da EWSR ao longo destes dez anos?
O impacto tem sido positivo e essa é a avaliação geral. A Ericeira tem atraído muita população e isso confere-lhe um carácter mais aberto e sofisticado. Estas características fazem com que tenha uma população mais jovem, mais saudável e desportiva e uma estrutura económica mais dinâmica e moderna. Quanto aos custos, tínhamos a perceção prévia de que seriam mais elevados. Sim, houve alguns problemas associados ao rápido crescimento, mas parece-nos que tenham sido baixos em relação aos ganhos obtidos.
No que toca à imagem da Ericeira, existe coerência entre a perceção por parte dos locais e dos visitantes?
Os elementos mais valorizados são praticamente os mesmos: a natureza e o mar. A tranquilidade oferecida por viver em tal ambiente é muito valorizada pelos habitantes locais. A principal razão para a visita é o relaxamento. Sim, há coerência.
Com base neste estudo, será apresentado um guia com recomendações para o futuro da EWSR, bem como das restantes World Surfing Reserves e World Surf Cities. Que importância terá as entidades responsáveis adotarem e implementarem essas guidelines?
Bem, é preciso ser prudente. Não me atrevo em dizer que é importante que implementem as nossas recomendações. Mas acredito que os resultados deste estudo e as recomendações emanadas em consequência podem ajudar outras Reservas e outras Surf Cities a gerar mais conhecimento útil e a melhorar as suas intervenções sendo que, para tal, é essencial que este seja adaptado à realidade local. No âmbito dessa aprendizagem, acredito que o mais importante seja a abordagem adotada. Esta deverá permitir que olhem para as diferentes áreas de impacto de forma integrada e abrangente. É essencial que não se detenham numa simples quantificação do impacto económico e procurem, sobretudo, compreender o impacto global do surf no seu território. Isso parece-me ser uma lição importante a retirar do nosso estudo e das nossas recomendações e que pode perfeitamente ser adaptado a qualquer outra realidade similar.
O projeto EWSR+10 teve como mote “por uma reserva mais sustentável” – tendo em conta o que apurou durante a realização deste estudo, considera que existem condições para a EWSR se tornar efetivamente mais sustentável? Quais sãos os passos principais que devem ser tomados nesse sentido?
Quero ser otimista em relação à sustentabilidade, embora a um nível geral seja difícil para mim sê-lo. Claro que existem condições para que a EWSR seja mais sustentável. Apesar da falta de uma figura legal para garantir a proteção da Reserva, esse reconhecimento está a entrar diretamente noutros planos do território, o que pode significar mais e melhores medidas de proteção.
a gestão de recursos pode ser optimizada para melhorar o impacto ambiental
Os principais desafios para a EWSR encontram-se no curto, médio ou longo prazo?
Acredito que os desafios são de médio e longo prazo, embora seja necessário tomar medidas agora, no curto prazo. Os principais desafios que vemos são sociais e ambientais. São dinâmicas lentas, mas com muita inércia. É necessário que se tomem medidas no imediato para evitar que questões como o impacto do transporte, a urbanização excessiva ou a estagnação da qualidade de vida local continuem a tendência negativa demonstrada e que, mais tarde, será muito difícil de reverter.
Entre 2015 e 2020 o número de pessoas com licenças federativas na Ericeira cresceu 138,7% – estes dados atestam a crescente atratividade do surfing na Ericeira ou, sobretudo, uma evolução do Ericeira Surf Clube, que se reflete na atração de atletas federados?
Não sou capaz de estabelecer causa e efeito porque são dados que nos saem do controlo. A crescente atratividade de uma atividade muitas vezes melhora as estruturas de clubes e organizações porque atrai mais pessoas, capacidade, talento e recursos. A melhoria das estruturas e sua maior capacidade de gestão tornam as atividades mais atrativas. Faltam-me dados para saber se veio primeiro a galinha ou o ovo.
Tratando-se de uma Reserva Mundial de Surf, que visa sobretudo a proteção das ondas e respetivos ecossistemas, a vertente ambiental deverá ser preponderante – como é que o estudo avalia estes impactos em termos absolutos e na sua relação e articulação com o âmbito económico?
É uma articulação complicada. O crescimento económico, medido pelos indicadores económicos actuais, é consequência de um maior nível de uso de recursos, e essa maior exploração de recursos tem impacto ambiental. É claro que a gestão de recursos pode ser otimizada para melhorar o impacto ambiental. Esse é o objetivo. No estudo não contrastamos impacto ambiental com benefício económico. Parece-nos que este não é o caminho. Podemos atribuir um valor económico à água limpa? Por quanto dinheiro estaríamos dispostos a permitir a urbanização de todo o litoral? Ao planear inicialmente o estudo, decidimos que apresentaríamos os indicadores dos diferentes impactos com o objetivo de facilitar decisões políticas e técnicas muito mais complexas do que a identificação de um número geral de avaliação de impacto baseado unicamente em valores económicos.
A perceção dos residentes que responderam ao inquérito sobre o impacto ambiental da Reserva é, de certa forma, mista, revelando orgulho na Reserva mas criticando uma certa falta de medidas de proteção adotadas desde a respetiva consagração, entre outros aspetos concretos – como se pode encarar esta ambiguidade?
Não vejo isso como uma ambiguidade. Na verdade, parece-me uma coerência muito positiva. Eles orgulham-se da Reserva, valorizam-na positivamente e querem que a proteção melhore. A qualidade da Reserva e o orgulho que sentem por ela tornam-nos mais exigentes.
É também de acrescentar que o fator mais valorizado pelos turistas (sejam ou não surfistas) é a paisagem natural da Ericeira, o que reforça a importância da respetiva proteção…
Sim, especialmente quando se trata da proteção do solo. A atração da Ericeira gera crescimento populacional e turístico, o que por sua vez provoca pressão para a edificação e a necessidade de dar resposta a esse crescimento. Se esse crescimento não for controlado, acarretará uma perda de atratividade. São essas pressões que devem ser respondidas com um bom planeamento de uso dos solos.
Os principais impactos ambientais negativos apontados são a artificialização do solo, devido à pressão urbanística, a diminuição da biodiversidade (especialmente nas zonas de acesso ao mar) e as emissões derivadas do transporte, principalmente por parte dos turistas que chegam à Ericeira – todos eles podem ser mitigados?
Os solos artificializados são difíceis de reverter. É possível, mas são processos muito lentos. Se o crescimento populacional também for mantido, é mais complicado. Sim, é possível controlar esse crescimento por meio de bons planos de uso dos solos. Os impactos sobre a biodiversidade são bastante limitados. Nós próprios não os medimos, mas recolhemos os resultados de um trabalho muito interessante de Helena Caria Pedro. Neste trabalho, ela propõe algumas medidas muito interessantes e simples de implementar para reduzir esse impacto. Em relação às emissões derivadas do transporte encontramos um dilema: como Reserva queremos que mais pessoas venham surfar e quanto mais pessoas vierem, maior será o impacto. Mas a partir da Ericeira ou de Mafra pouco se pode fazer para mitigar esse afluxo e os impactos geram. É certo que diferentes medidas podem ser tomadas para reduzir as emissões de transporte dentro do município. Inclusivamente até em relação ao transporte necessário de ou para Lisboa, aeroporto ou concelhos envolventes. Mas a redução das emissões do avião do rapaz australiano que respondeu ao nosso inquérito está nas mãos de outras instâncias que ultrapassam completamente o raio de intervenção local.
é necessário decidir em que nível de dependência do turismo queremos estar
A perceção dos residentes que responderam ao inquérito é especialmente negativa no que toca ao impacto territorial… de que forma este dado é preocupante, nomeadamente no que toca ao desenvolvimento sustentável da região em estudo?
Parece-nos que se trata de um alerta aos responsáveis pelo modelo urbanístico que tem vindo a ser desenvolvido na Ericeira. Os resultados dizem-nos: “Senhores, queremos menos carros nas ruas, mais espaços verdes e abertos, menos asfalto… Um modelo de vila para as pessoas que melhore nossa qualidade de vida”. Note-se que, dada a sua complexidade, parece-me que deve ser relativamente fácil abordar esta questão. Não é barato, mas é simples.
No âmbito do impacto económico destacam-se algumas áreas de negócio: o imobiliário, que surge como o principal motor do concelho, a hotelaria, a animação turística (cujo número de operadores aumentou 762,5% desde 2011) e as escolas de surf, que quadriplicaram desde a consagração da Reserva – que leitura devemos fazer destes dados?
Bem, tal qual a realidade que demostram e que é bastante conhecida: a economia da Ericeira “turístificou-se” e o surf tem sido uma importante alavanca neste processo. A partir daí, é necessário decidir em que nível de dependência do turismo queremos estar e que medidas tomar para se possa gerir adequadamente essa dinâmica.
Nas conclusões do estudo, refere que considera possível desenhar uma ferramenta de avaliação comum para todas as World Surfing Reserves, partindo nomeadamente de alguns pontos de análise presentes neste estudo – pode destacar alguns e apontar mais algumas características fundamentais para essa desejável ferramenta?
Utilizámos indicadores muito comuns e acessíveis. Na verdade, a maioria deles vem de bancos de dados públicos e são semelhantes na maioria dos países. Quando desenhámos a metodologia do estudo, esse era um objetivo fundamental, que fosse utilizável por outras regiões. Acredito que o estudo oferece uma proposta sobre a qual trabalhar. Há muitas melhorias possíveis. Mas pode servir de trampolim para avançar numa ferramenta de avaliação que pode ser utilizada pelos promotores das Reservas, sem necessidade de recorrer a estudos académicos complexos. Se tiverem, melhor ainda. Conseguimos aceder a muitos. Mas queríamos que o estudo pudesse oferecer uma avaliação sem a necessidade delas. Esta ferramenta deve cumprir uma dupla condição de que, embora pareça muito complicada, é possível. Deve ser adaptado a qualquer Reserva, de forma a oferecer a informação que cada Reserva necessita, localizada na sua realidade territorial. Mas, ao mesmo tempo, deve ter uma base de indicadores que permitam a comparação entre as diferentes Reservas. Isso parece muito complicado, mas acreditamos que é possível. Pelo menos, essa é a intenção com que trabalhamos.
Continuando nas conclusões, um dos destaques vai para o desconhecimento daquilo que significa ser World Surfing Reserve, tanto entre a população residente como por parte dos turistas que visitam a região da Ericeira. Como se poderá explicar isto?
Achámos muito curioso, realmente. Não conheço as causas, mas acho que já apresentámos uma proposta: promover uma figura jurídica ou um instrumento de gestão económica da Reserva para uma utilização mais adequada do nome EWSR.
Existe mais alguma conclusão que considere pertinente destacar ou algum dado que considere surpreendente?
Partimos de muitas hipóteses de possíveis impactos positivos e negativos que obtivemos a partir de uma revisão inicial da literatura. Com essas hipóteses articulámos o estudo. Houve uma que me deixou com vontade de continuar a aprofundá-la: a transferência de mais-valias para fora do município. Os moradores que responderam ao inquérito afirmaram que o crescimento económico não se refletiu no aumento dos seus rendimentos e poder aquisitivo. O indicador económico baseado nos dados da PORDATA também mostra esta ideia. Esta transferência de mais-valias é habitualmente comum em zonas turísticas e é por isso que a analisámos. No entanto, o crescimento da Ericeira levou-nos a pensar que isto não aconteceu aqui. É preciso sublinhar que os dados que observámos são referentes a todo o município de Mafra, pelo que é possível que haja alguma distorção na análise. Mas, sim, é uma questão que despertou a minha curiosidade e da equipa e vontade de investigá-la um pouco mais.
Fonte: EriceiraSurfClube
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