“A verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente” – Albert Camus (1913-1960)
Vivemos numa época e num país onde os velhos são trapos, muitos vivendo escondidos e, como tal, também esquecidos, muitos deles sozinhos em casa ou depositados nos armazéns de velhos a que, pomposamente, muitos chamam de lares de idosos. Felizmente que existem muitas exceções, de bons exemplos, mas que são insuficientes porque o Estado se demite dessa função social e humanitária.
Além disso, pior ainda, são aqueles que são esquecidos nos hospitais, e que, tendo alta médica, os familiares, que ali os levaram, estão
incontactáveis pelos serviços sociais dos hospitais. Como é possível que estas situações continuem a acontecer, sem que legislativamente se implementem regras para que estas situações não ocorram? Não são apenas as camas hospitalares que tanta falta fazem para os internamentos necessários e estão ocupadas pelos idosos abandonados pelos familiares, mas sim uma questão de dignidade humana. Talvez valesse a pena compararmos as leis que penalizam os abandonos dos animais de companhia com o abandono de idosos. Coraríamos de vergonha, porque a nossa sociedade vai dando tristes exemplos, embora, aparentemente, o
Código Penal (Art. 138º e 388º), na questão dos abandonos, pareça semelhante, a sociedade está mais mobilizada para as questões sobre animais do que para os humanos. Triste, muito triste!
Há tempos, presenciei uma cena que me fez humedecer os olhos, e um misto de tristeza e de medo apoderou-se de mim, antevendo uma velhice que ainda poderei alcançar. Era uma manhã do mês de maio e numa esplanada à beira-rio (nos arredores de Lisboa) estava um grupo de idosos que para ali foram levados, num passeio higiénico, pela instituição onde são hóspedes (num lar de velhos ou idosos). Quase silenciosamente, todos olhavam na mesma direção, podendo abarcar o rio Tejo, ali já a caminho do mar, e a ponte 25 de Abril e o monumento do Cristo Rei, se as suas vistas lhes permitissem desfrutar a imensidão daquele horizonte cheio de luz e dum forte azul-marinho. Abstraí-me de tudo e, por alguns minutos, concentrei os meus olhares naquelas criaturas (homens e mulheres), todas elas com idades a rondar os oitenta anos, em posturas silenciosas e inamovíveis, quase parecendo estátuas sentadas e que eu tentei ler (eu que gosto de tentar ler a alma dos seres humanos) o que lhes iria na alma. Confesso que tive pena de não lhes ter perscrutado os seus sentimentos, tentando saber o que aqueles seres humanos, em final de vida, sentiam naquele momento e naquele cenário de encher a alma às pessoas mais sensíveis nos quadros que a natureza ou paisagem nos oferece. Naqueles minutos, apoderou-se de mim uma grande tristeza e senti mesmo a ameaça duma lágrima a querer sair e, por isso, preferi sair dali, porque aquela cena era demasiado forte para o meu coração doente, ferido aos quarenta e seis e aos cinquenta e dois anos da minha vida dura desde criança. Com todo o esforço interior, fazendo das tripas coração, como se diz, e com a ajuda da Medicina, sempre a evoluir, já estou na escala dos
seniores ou idosos, ainda abaixo da esperança média de vida (EMV) dos homens portugueses e que se situa nos 78 anos, para os homens, e 83 anos, para as mulheres. Tenho mais um bónus de quatro, a ajuntar aos 28 anos já consumidos, para atingir o índice da EMV para os homens. E eu quero viver e faço por isso, porque viver é bom, desde que a saúde o permita e outras variantes estejam, minimamente, cumpridas. Mas, confesso que me preocupo muito com esta fase das nossas vidas, agora que graças à medicina e a outros fatores, a velhice pode chegar mais tarde e ser também mais longa. “Não há bela sem senão” e as lacunas da sociedade e da família levam à solidão, que mata a alma, e o abandono e outras carências básicas, matam o corpo.
Os centenários são, cada vez em maior número e até o conceito e o período de terceira idade se vai modificando. Por razões várias, a população sénior cresce em número e em longevidade, por oposição à baixa natalidade (o desequilíbrio está a ser compensado pelos imigrantes), pelo que o futuro não augura nada de bom, num país onde os apoios têm sido concentrados nas crianças e nos jovens, alguns já nada têm de jovens e que vivem num forte hedonismo, esquecendo-se que os velhos geraram riqueza para o país. Na falta duma política adequada, pululam por aí autênticos” depósitos de velhos a que chamam casas de repouso ou lares de idosos. Contudo,
alguns desses estabelecimentos não reúnem as condições adequadas e, por isso, muitos acabam por ser encerrados. Entrar em certos lares de idosos pode sofrer-se uma violência emocional, incluindo nesse estado de alma as condições, por vezes, desumanas dos residentes, porque a cena que presenciei na esplanada e outras semelhantes que vamos vendo por aí, são suficientes para me deixarem profundamente triste e mais triste ainda por verificar que este país não é para velhos porque muito pouco se faz por eles (nós). Por isso, é tempo de todos (Estado- este com tantas instalações abandonadas que podem ser adotadas para residências séniores – e demais
instituições e famílias) olharmos para os séniores (nome mais bonito e sem a carga pejorativa de velhos) porque essa pode ser uma etapa que muitos alcançarão, apesar de muitas mortes prematuras por erros vários (tabaco, álcool, drogas, acidentes rodoviários,
etc). E será que cada um de nós sabe preparar-se para a velhice? E serão os nossos filhos culpados da nossa velhice poder vir a ser uma fase de tristeza e de morte lenta, por vezes a desejarem que morramos depressa, para se verem livres do fardo que os seus
progenitores são, para eles e para a sociedade? Alguns, estão mais focados na herança, mesmo pequenas que elas sejam. Certos descendentes abandonam, literalmente ou desleixo, os seus familiares e depois acabam por receber as heranças. Que brutal
injustiça| E se as leis contemplassem a situação de deserdar àqueles que não quiseram cuidar dos familiares! São tantas as situações de total abandono, até mesmo na morte, e depois o seu espólio reverte, porque legalmente, para herdeiros por vezes afastados. “Filho és, pai serás. Como fizeres, assim receberás”. É que também fomos filhos e estas atitudes são uma herança que passa de geração em geração, desfeita que foi a organização familiar assente em gerações autossustentadas e onde coabitavam, no mesmo lar (ou na mesma rua, aldeia, vila ou cidade) pais, filhos e netos regenerando essa estrutura. Nascia-se e morria-se na mesma casa e hoje até a morte é escondida aos jovens! Acima de tudo, a culpa é da nova organização das sociedades ocidentais em que transformámos em descartáveis e pesos mortos, porque deixámos de produzir ou de consumir, não alimentando o fervilhar da sociedade materialista e de consumo. Triste será a nossa velhice, se nada fizermos para alterar a situação e é tanto o que pode e deve ser feito!
Reescrevi esta crónica, escrita por mim em 2009 e com menos de 60 anos e com as patologias que já tinha, não esperava vir a viver mais os 15 anos que, entretanto, já vivi, porque hoje, mais uma vez, senti que já sou sénior, ou serei um idoso ou um velho?
Reformado e com benefícios nos transportes públicos na área metropolitana da minha residência (Lisboa) posso, sempre que o quiser, usar o passe, em vez do carro, até porque sou sensível ao efeito nefasto deste no ambiente, e andar nos transportes públicos.
Raramente um jovem, que vá sentado, oferece o seu lugar a um passageiro sénior/idoso, se este não revelar uma deficiência física, nesse caso com alguns lugares que lhe estão destinados, nos transportes públicos. Preferem olhar para o lado, fingindo-se distraídos. Valores que se vão perdendo, não apenas neste exemplo. Entrei e uma passageira, mulher na casa dos 50 anos, ofereceu-me o seu lugar e tendo eu agradecido o gesto e declinando, insistiu comigo e aceitei. Depois de sentado, ainda me recomendou o uso do apoio lateral existente no banco. Foi um gesto lindo e raro, mas eu senti-me velho, embora com aquele tratamento cívica e humanamente louvável.
Serafim Marques – Economista (Reformado)
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