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Crónicas de Lisboa: O Caixeiro Viajante

Os poucos dias que passou na sua aldeia natal, foram dum certo desconforto, apesar da sua juventude. Aquele já não era o seu mundo e ansiava pelo regresso à “cidade grande”. (Parte final da crónica anterior: O Caixeiro)

O seu coração batia com acelerada palpitação, sempre que na loja entrava a Rosinha, a filha do seu patrão, uma menina prendada e que gozava os prazeres da vida, porque a fortuna dos pais lhe permitia esses devaneios e sem motivação para frequentar a universidade. As companhias com quem andava, desagradavam aos seus progenitores e o Delfim ruía-se de ciúmes, ao vê-la entrar no carro de alguns “meninos-bem” da burguesia da cidade que a esperavam à porta de casa, ao lado da retrosaria. Assim, ele tinha a noção de que ela não seria a mulher da sua vida, apesar da grande consideração que o seu pai nutria por ele. Promovera-o e já delegava responsabilidades e tarefas acima da função de Caixeiro Principal e começava a pensar que não desdenharia vê-lo como seu sucessor à frente dos negócios. O casal Ferreira começou a convidá-lo para jantar lá em casa, mas, ali, o seu coração batia mais forte, principalmente quando os patrões se ausentavam da sala de jantar, sob qualquer pretexto, e deixavam os dois, a sós. Mas a Rosinha era arisca e olhava-o com desdém. Via-o como um aldeão arribado à cidade, enquanto ela era uma menina “que tocava piano e sabia francês”.

Um dia, a criada da casa, uma moça da sua aldeia, que para ali viera servir aos doze anos, um pedido dos seus pais – “leve-me esta dona Laurinda”, pediu a mãe da rapariga, ouvia, sem ser vista, os seus patrões dizerem que tinham de arranjar casamento para a filha, antes que a gravidez dela começasse a ser notada e o Delfim, dizia ele à esposa, seria o rapaz ideal e que garantiria a continuação dos negócios, pois a filha não passava de uma menina mimada. Ele ficou incrédulo, mas acima de tudo, destroçado, porque via cair por terra a possibilidade de realizar o seu sonho, uma paixão inconfessa. Não era a fortuna dos patrões que o motivava, mas sim poder casar com a mulher dos seus sonhos. Compreendeu que não era apenas pelos seus méritos de trabalhador competente e cultura e educação aprendida no Seminário, que os convites para casa dos patrões se sucediam. Afinal, aqueles estavam a criar as condições, não expressas, para proporcionar a aproximação dele com a Rosinha, de modo a casá-los. Sentiu-se traído na sua dignidade e ouvidas estas palavras da sua conterrânea, só lhe apetecia fugir dali. Foi ao quarto, meteu na maleta o que pôde, e saiu porta fora, vagueando pela cidade sem saber que rumo tomar. Queria esquecer o desgosto que acabara de sofrer. Acabou por entrar na estação e apanhou o primeiro comboio a partir, sem saber para onde iria. Numa vila, quase no final da linha, alugou um quarto na Pensão Central e dali não saiu durante dois dias. Tomou uma camioneta de passageiros que o levasse a algures e foi aceitando trabalhos, mas não se fixava muito tempo neles e errava de terra em terra.

Cansado e com um certo vazio na alma, voltou à “cidade grande” e encheu-se de coragem e foi acertar as contas salariais com o patrão e, também, pedir-lhe desculpa por ter abandonado, bruscamente, o seu lugar na firma. Disse não à tentativa do senhor Ferreira, que lhe pediu para que ele voltasse ao seu posto, porque era o melhor de todos os caixeiros que tinha ao seu serviço e, debaixo do olhar dos ex colegas, que no passado não escondiam a inveja que sentiam por ele ser o preferido do patrão, saiu e, na rua, acabaria por cruzar-se com a Rosinha a empurrar um carrinho de criança. Foi como se lhe tivessem espetado mais uma espada na alma.

Porque ainda tinha algum dinheiro, apesar de todos os meses enviar algum ao pai, para ajudar a combater a pobreza da família, aproveitou para vaguear pela “cidade grande”, principalmente, pela baixa, onde estavam localizadas todo o tipo de lojas, e foi cogitando uma ideia que, nalgumas vezes, lhe surgia em mente. Por que não ser um “Caixeiro Viajante”? Aqueles que percorrem vilas e cidades, com mostruário e catálogos, a angariar encomendas para as fábricas e firmas de importação e exportação. Serviu-se dos seus conhecimentos, quando estes comerciantes visitavam as lojas do senhor Ferreira e ofereceu os seus serviços àquelas empresas que conhecia.

Grão a grão, as firmas representadas foram aumentando e lá andava ele de terra em terra (vilas e cidades) como um saltimbanco. Obtidas as encomendas, enviava-as pelo correio para cada um dos seus representados e recebia deles uma comissão pelas vendas angariadas.

Nas deslocações, usava os comboios e as camionetas e dormia nas pensões locais e, nesse peregrinar, iam surgindo algumas paixões, mas muitas delas, não passavam do tipo de “namoricos de feira”. Alguns deles evoluíam para situações mais fortes e lançando nos apaixonados a angústia de cada separação da visita que ele ali fazia. Com falsas promessas de casamento e amor eterno, lá ia gerindo este jogo de risco, porque alguma delas poderia desmascará-lo, apesar de nunca fornecer o endereço da residência. Nalgumas urbes que visitava, tinha um colinho onde depositar a cabeça numa das suas muitas namoradas que ia conquistando.

Prisão conjugal estava fora das suas cogitações, quer por motivos profissionais, um nómada sempre em giro, quer também porque o seu coração ainda não tinha sarado do duro golpe que sentiu pela Rosinha. O que sentia por ela era muito diferente daquelas com quem ia namorando.

Em cada final de semana, se não ficasse preso nos braços duma namorada, regressava à “cidade grande”, onde mantinha o arrendamento do seu quarto, para mudar o conteúdo das suas maletas – pessoal e profissional – e verificar o correio, principalmente os cheques das comissões angariadas nas suas vendas, a sua única fonte de rendimentos.

E o tempo ia correndo, como a água dos rios que correm sob as muitas pontes que atravessava, no seu périplo profissional. Mas um dia, começou a sentir uma tosse seca e persistente. Pensou que seria provocada por algum resfriado, conjuntamente com o tabaco que muito fumava. Ele, um bom garfo à mesa, começou a perder o apetite e a emagrecer a olhos vistos. Sem forças e já a rondar o aspeto tísico, interrompeu a atividade e regressou à “cidade grande”. Afinal, o Delfim tinha sido apanhado pela tuberculose, aquela maldita epidemia, ainda sem cura com aplicação farmacológica generalizada, e alastrante nas comunidades, mas com maior incidência nas classes pobres, mas também os ricos eram apanhados por ela. A maldita tuberculose também não excluía as crianças, porque ainda não havia as vacinas surgidas depois. A velocidade de propagação era grande e a cura era feita em alojamentos hospitalares designados Sanatórios, localizados à beira-mar ou nas encostas das serras, onde o ar era puro. Cura assente em boa alimentação e total repouso físico e emocional. Encheu-se de coragem e abordou, na rua, o seu ex-patrão, porque sabia que ele se relacionava com alguns médicos da “cidade grande” e pediu-lhe que intercedesse por ele, para que fosse internado, com urgência, num sanatório.

Ao fim de dois anos, já curado e sem mazelas pulmonares, bateu à porta do ex-patrão, para lhe agradecer todo o carinho que lhe concedeu durante o internamento – aquele visitou-o várias vezes, mas de visitas com o distanciamento físico como se recomendava. Aceitou o convite do senhor Ferreira para o coadjuvar na gerência dos negócios e começou a trabalhar com extrema dedicação e competência, mas como uma paixão não correspondida pode tornar-se eterna, o seu coração batia aceleradamente, sempre que se cruzava com a Rosinha que, agora e com outra maturidade, era uma zelosa mãe do seu filho, filho de pai incógnito, porque ele, o suspeito pai biológico, desaparecera.

Serafim Marques
Economista (Reformado)

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