Geral Opinião

Crónicas de Lisboa: As Esmolas da Solidariedade Inconsistente

“O que se deve em justiça, não se oferece em caridade” – J.C. Fajardo.
Neste Verão, como noutros, o nosso país foi atingido por vagas de incêndios em catadupa que levaram muita gente ao desespero pelas suas perdas de toda uma vida. Muitos, confessavam perante as camaras das televisões, sempre ávidas destes tipos de dramas, explorando o sentir da alma ou de revolta, para atingirem a vontade “voyeuristas” dos espectadores, que não saberiam como reerguer se, se não houvesse apoios, sempre escassos, apesar de mais prometidos do que cumpridos. Já neste outono, muitos foram os estragos causados pelas chuvas e ventos dos tornados e as cenas de dramas a repetirem- se. Senti-me, honestamente, enojado com as reportagens televisivas sobre os dramas. Foi e é muitas vezes, um nível tão baixo desses trabalhos televisivos. Falta bom senso e objetividade dessa missão de informar, sem explorar as fragilidades das vítimas.

Nas cidades e vilas, os efeitos dos castigos da natureza, (ou dos humanos?) são, normalmente, menores do que nos povoados e zonas rurais “castigando” mais os desfavorecidos da sociedade. Do mundo, seja no hemisfério norte seja no sul, chegam-nos imagens da extrema violência da “mãe natureza”, também elas sempre com maior impacto destruidor. Pelos vistos, a natureza ainda não nos fustigou com as ondas de frio, embora se prevejam para breve, pois o “verão” parece não nos abandonar, mas logo que tais episódios, esses naturais pelo pico do inverno, e, principalmente, durantes as noites frias, castigando ainda mais os renegados da vida, chamados de “sem-abrigo”. Em números sempre a crescer nas cidades e vilas, devido a vários fatores, por exemplo, falta de habitação, desemprego, álcool e drogas. Quando o pico desses episódios ocorrerem, muitas instituições e cidadãos acendem uma “chama de solidariedade” em torno dos sem-abrigo, idosos solitários, etc. São ações louváveis, face às contingências da natureza ou episódios violentos, embora muitas instituições pratiquem este tipo de apoios durante o ano. Todavia, muitas das imagens que presenciamos nas ruas, se não fingirmos que o problema não nos diz respeito, ou nos entram casa adentro através das televisões, vêm carregadas de hipocrisia. Não por parte dos “agentes da caridade”, mas duma sociedade que “tolera” a existência destes desafortunados da vida. Como é possível que as sociedades modernas e desenvolvidas “criem e tolerem” que seres humanos levem uma vida que nem os animais de estimação, a têm, estes cada vez em maior número e com mordomias, estes convertidos em “príncipes”, que deveriam envergonhar gente de mente sã e de alma aberta? Imagine-se quão elevados são os recursos “desviados” para a alimentação de animais de estimação, quais brinquedos com vida e caprichos dos seus donos, recursos esses que poderiam destinar-se à cadeia alimentar dos humanos, não só no nosso país, mas em países onde nem há água para matar a sede de milhões de seres humanos como nós, que somos “gordos e anafados” pelos excessos e as extravagâncias.

Infelizmente, muitos políticos e intelectuais que, ao abrigo da liberdade individual, entendem que os desafortunados da vida são livres de seguir o seu caminho, como se aquela forma e grau de pobreza não retirasse àqueles seres humanos a possibilidade de dela saírem, se para tal não forem ajudados e obrigados. Outros, partem do princípio que a riqueza material depende da própria pessoa e não da boa ou má vontade dos outros, isto é, que a riqueza está dentro de cada um e, por isso, deve levá-lo a acreditar e a lutar para sair do estado de pobreza. As “cenas” que presenciamos, quando andamos por várias zonas das cidades e vilas ou que as televisões nos exibem, acabam por revoltar os mais sensíveis, face às causas e às atitudes de todos que, de uma forma ou de outra, somos responsáveis. É revoltante pensar-se: como é possível que seres humanos, desafortunados da vida, coabitem nas nossas urbes sem qualquer dignidade?

Não me conformo. Por outro lado, as instituições que “alimentam” essa caridade, fazem-no, em muitos casos, duma forma individualista, isto é, sem integração ou complementaridade com outras instituições e entidades. A pobreza não se combate só com esmolas, mas, essencialmente, com atitudes e ações que dotem o pobre com meios para poder deixar a pobreza onde caiu ou nasceu. Os “socialismos” e muitas instituições têm lutado para eliminar as diferenças sociais e a pobreza, mas não o conseguiram, porque têm apostado em vias sem consistência. Aqueles, acreditando que os pobres acabam quando acabarem com os ricos(!) e estas privilegiando a prática da caridade, mas esta não se deve fazer só com o coração, porque se optarem por “dar e dar”, as pessoas vão cair na subsidiodependência.

A lógica neoliberal é a de que as pessoas devem ser apoiadas, mas também devem empenhar-se na resolução dos seus problemas, isto é, praticar a assistência, mas também tentar solucionar os problemas das pessoas e envolvê-las nesse objetivo. Ademais, os problemas sociais são cada vez mais complexos, pelo que a seu combate implica respostas multidimensionais, mas a desresponsabilização cívica é também um grave problema das sociedades modernas, cada vez mais egoístas e menos solidárias.

Como existe um abismo entre os pobres e a riqueza, a melhor via é através da educação e a formação, isto é, o abismo será vencido se for vencida a ignorância, pois esta é a mãe de muitos males. “Ensina-o a pescar, em vez de lhe dares o peixe” – ditado profundo. Não são os países ricos aqueles que têm melhor educação e formação? Esta é causa e efeito, pelo que reforça aquela máxima de que o melhor caminho para o combate à pobreza está na educação e na formação? Contudo, ali também há milhares de desafortunados do modelo de sociedade.

E agora, pelo Natal, louvam-se as ações de solidariedade e fraternidade, mas também sobressai a solidariedade inconsistente. É assim com os “amigos” e também com os familiares. “Eu não ligo nada ao Natal” é um slogan publicitário, que passa na televisão, de mau gosto, digo eu, duma empresa. Que o Natal seja “rápido”, porque a hipocrisia e os cinismos são muito incómodos. Fingir, também dói. Passado o calendário natalício e outros semelhantes, tudo volta ao esquecimento dos cidadãos e de muitos daqueles que deveriam adotar medidas para a resolução das “chagas da sociedade”, porque acabar ou diminuir a pobreza é um desígnio prioritário e fortemente humanista, apesar desta ser uma questão com séculos e para a qual o homem tarda em encontrar uma solução. Chegou mais depressa ao Espaço, em cujos projetos se gastam muitos milhões. Apesar de tudo, a esmola tem subjacente, em muitas situações, relações de poder e dependência entre aquele que a dá e o necessitado que a recebe.

Serafim Marques
Economista