Geral Opinião

Cerrar Fileiras: A Europa na Emergência Híbrida Trumpista-Russa

Ao longo do último ano, assistimos a uma sucessão de sinais que anunciavam exatamente o ponto onde agora chegámos, e, apesar de sermos poucos os que o dizíamos, a verdade estava à vista, para quem quisesse ver. A maioria preferiu manter a ilusão confortável de que tudo continuaria na mesma, confiando que os Estados Unidos de Trump seriam inconsequentes, como tantas vezes antes. Mas, desta vez, não. Desta vez, há um documento estratégico claro, assumido, que transforma em doutrina aquilo que muitos insistiam em tratar como exagero ou fantasia: o abandono da NATO, tal como a conhecemos, e um ataque político direto à União Europeia, através do apoio explícito a forças populistas internas. É preciso negar aos EUA a destruição dos valores europeus, que esse mesmo documento condena explicitamente, defendendo, com unhas e dentes, o Estado de direito, a pluralidade institucional e a soberania partilhada, contra a agenda de fragmentação e iliberalismo que aí se proclama. A guerra híbrida americana, conjugada com a guerra híbrida russa, constitui um duplo envolvimento, destinado a destruir agora um inimigo comum: a Europa integrada.

A Europa está a ser colocada perante a sua própria fragilidade. A UE vai ter de responder com mais união, não com menos. O Reino Unido, queira ou não, será empurrado pela própria lógica geopolítica para uma reaproximação, sob pena de ficar isolado num tabuleiro onde já não tem peso suficiente. E a Hungria, finalmente, terá de escolher de que lado está. Nem nos EUA trumpistas, nem na Hungria de Orbán, existe uma democracia liberal genuína: ambos exibem captura de instituições judiciais, media controlados pelo executivo, erosão do Estado de direito e uso de eleições como mera legitimação de poder pessoal — traços de autocracia competitiva, que se alimentam mutuamente, através de retórica anti-UE e apoio cruzado a populismos. Orbán não é um dissidente democrático, mas o protótipo europeu de líder iliberal, que beneficia dos fundos e da segurança da UE, enquanto corrói os seus princípios fundadores, traindo o pacto comum, em nome de uma soberania nacional ilusória. Trump, por seu lado, abandona a NATO não por fraqueza americana, mas para impor uma doutrina unilateral, que esmaga alianças multilaterais em favor de transações bilaterais, sob tutela dos EUA — um imperialismo que vê a UE como rival, não como parceiro. Porque este jogo de ser e não ser, de beneficiar do bloco enquanto trabalha contra a sua coesão, tornou-se insustentável, no momento em que é preciso cerrar fileiras contra o iliberalismo autocrático.

E é aqui que entra a reflexão filosófica e ética que este momento exige. Cerrar fileiras, perante uma guerra híbrida, e ameaças externas de apoiar a implosão interna do próprio bloco, através do financiamento de populismos e da corrosão das instituições, não é apenas uma questão estratégica: é uma questão ética. Vai contra a frase célebre de Churchill — “a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras” — mas os tempos são outros: para preservar os valores europeus, que o documento trumpista condena explicitamente, é preciso alterar procedimentos e atitudes, adaptando a democracia à ameaça existencial, sem renunciar ao seu núcleo ético. E vai ter de ser — é uma emergência absoluta.

Quando um conjunto de Estados decide constituir-se como comunidade política, assume um pacto: direitos partilhados, deveres comuns, objetivos convergentes. A pluralidade é saudável, em tempos de normalidade, mas, num contexto de guerra híbrida, a permissividade absoluta transforma-se em vulnerabilidade. Deixa de ser diversidade, e passa a ser falha estrutural.

Por isso digo, sem rodeios: ser de um bloco, e ao mesmo tempo não ser, é hoje uma impossibilidade lógica, política e ética. Não há como contornar esta verdade. Ou se está dentro, com a lealdade mínima que sustenta a própria existência do bloco ou se assume estar fora. Tudo o resto é uma ficção perigosa, num momento em que já não há espaço para ambiguidades.

Como europeísta convicto, acredito que Portugal só tem soberania e voz no mundo, na plena integração europeia, numa soberania partilhada, que multiplica o nosso peso geopolítico e estratégico.

E, talvez, por mais incómodo que seja reconhecê-lo, tenha chegado a hora de admitir que algumas legislações precisam de ser revistas, não para limitar a democracia, mas para proteger as condições que permitem que ela exista. À primeira vista, medidas como o adiamento temporário de eleições podem parecer antidemocráticas, mas, num contexto de guerra híbrida declarada, tornam-se necessárias, para impedir que o adversário capture o sistema pelas suas próprias regras. Quem trabalha para fragilizar a estrutura comum, sobretudo com apoio direto de potências externas hostis, não está a exercer pluralismo — está a sabotar o pacto que voluntariamente assinou.

É por isso que as próximas decisões políticas europeias vão ter de ser duras. Ursula von der Leyen e António Costa, em conjunto com os chefes de Estado das grandes potências europeias, vão ter de assumir uma liderança corajosa. Em guerra híbrida, é possível, e desejável, recorrer a medidas defensivas drásticas, como o adiamento temporário de eleições nacionais, suscetíveis de serem instrumentalizadas por forças apoiadas do exterior: uma suspensão da democracia, que, embora filosoficamente condenável, se justifica como o mal menor, para preservar o pacto político comum, contra a captura estratégica pelo inimigo. Tal medida, na minha opinião como estratega, evita que o adversário use as regras democráticas contra o sistema, reafirma a democracia militante, e ganha tempo para reforçar defesas institucionais apesar dos riscos éticos de precedentes e narrativas populistas. Na minha opinião, esta é uma solução de recurso, para preservar o bem-estar e o progresso, sendo necessário colocar a segurança em primeiro lugar. Após a apresentação bem feita sobre os prós e contras do assunto, acho que há mais prós do que contras nessa decisão.

Será também necessário aprofundar os laços com o Mercosul, que igualmente enfrenta ameaças dos EUA, no seu projeto de integração sul-americana, criando uma frente atlântica contra a doutrina trumpista de fragmentação. A guerra híbrida não destrói tanques: destrói consensos, instituições, legitimidades.

O discurso de resposta direta de António Costa a Trump surpreendeu-me pela positiva. Mostrou clareza estratégica e coragem. Kallas também esteve à altura. Sinais raros, mas essenciais. Porque esta semana, na prática, os Estados Unidos declararam o óbito da NATO, e identificaram a União Europeia como obstáculo ao seu novo projeto geopolítico.

A Europa foi avisada. Agora, resta saber se está disposta a sobreviver.

Nuno Pereira da Silva

Coronel na Reforma