O Hamas, grupo armado que exercia com mão de ferro a governança do território de Gaza, está a perder força, tornando-se incapaz de continuar a desempenhar essa missão. O mesmo se aplica aos outros dois grupos extremistas que, em conjunto com o Hamas, cometeram atos terroristas e o auxiliaram na guerra contra Israel.
Em Gaza — um pequeno território densamente povoado e altamente urbanizado — persistem, como em muitas outras cidades do Médio Oriente (do Iraque à Síria e ao Líbano), laços familiares, clânicos e tribais. Mesmo com a presença de um Estado forte, estas estruturas tradicionais tendem a sobreviver ao tempo. Apesar de a maioria dessas comunidades já se ter tornado urbana, continuam a agrupar-se por bairros, onde mantêm uma grande autoridade sobre os seus membros.
Como é natural nestas sociedades árabes tribais ou clânicas, quando não há uma autoridade legítima ou até despótica que, pela força, consiga exercer a governança de um território, os cerca de sessenta clãs e famílias tradicionais que existem em Gaza tendem, por horror ao vazio de poder, a retomar o seu papel ancestral. Este inclui a administração da justiça, a segurança local e a distribuição de apoio humanitário. O perigo de tal situação é evidente: rapidamente começam a formar-se alianças tribais — algumas forçadas — o que potencia o surgimento de novos “senhores da guerra”, numa espécie de feudalismo moderno.
Tanto Gaza como a Cisjordânia, com o eventual desaparecimento da Autoridade Palestiniana, correm o risco de se tornarem ingovernáveis e ainda mais perigosas. É possível que enfrentem um destino semelhante ao da Líbia: um mosaico de milícias e lideranças tribais a disputar território, influência e recursos.
Curiosamente, pelas informações de que disponho, algumas destas tribos de Gaza já estão a restabelecer ligação com outras tribos árabes, com o objetivo de obter fundos para a reconstrução dos seus bairros e estruturas. Tive oportunidade de conhecer pessoalmente os chefes de algumas dessas tribos aquando da minha missão no Iraque. São líderes de comunidades com dezenas de milhões de membros espalhados por diversos Estados da região, muitos dos quais controlam recursos valiosos, incluindo a exploração e comércio de petróleo.
Este é, de facto, um dos grandes problemas estruturais do Médio Oriente: para muitas destas comunidades, o Estado é uma construção exógena e artificial. A lealdade tribal prevalece sobre a lealdade nacional. Qualquer governante que deseje exercer a autoridade de Estado nestas fronteiras herdadas do período colonial terá, inevitavelmente, de o fazer pela força — ou por um equilíbrio frágil entre clãs rivais.
Nuno Pereira da Silva
Coronel na Reforma

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