Geral Opinião

A Arquitetura do Poder e o Preço da Ucrânia


A súbita vontade americana de discutir a paz na Ucrânia sem a presença da própria Ucrânia e sem a Europa revela muito mais do que um simples desvio diplomático. Mostra uma forma antiga de olhar o mundo, uma lógica que distingue quem é sujeito da história e quem é apenas cenário. Ao assumir esta visão os Estados Unidos reforçam a narrativa russa de que a guerra nunca foi verdadeiramente entre Kiev e Moscovo mas entre Moscovo e Washington com a Ucrânia reduzida a território intermediário de um confronto maior. Não admira que a Rússia recuse negociar com Zelensky já que na sua leitura ele nunca teve peso ontológico suficiente para definir o rumo do conflito.

Aqui entra a minha análise que conduz a um conceito novo. Alegadamente os Estados Unidos estarão dispostos a trocar a Ucrânia por uma reaproximação económica e estratégica à Rússia numa tentativa de corrigir o erro que Kissinger antecipou. Ele alertou que empurrar Moscovo para a órbita chinesa criaria o pior desequilíbrio possível para o Ocidente. Agora que a Rússia se encostou demasiado a Pequim Washington tenta desfazer esse abraço mesmo que para isso tenha de sacrificar quem está na linha da frente.

Chamo a isto Doutrina do Descontrolo do Heartland. Esta política desiste de controlar os territórios entre o Negro e o Báltico que sempre passaram de mãos. É a anti-teoria de Mackinder: uma transferência desses locais de controlo para a Ásia admitindo que a China é o novo Heartland não por domínio territorial mas por conectividade através das rotas da Belt and Road.

Leitura errada. Para conter a China há que impedir os objetivos estratégicos dela no One Belt One Road. O Belt terrestre depende da Ucrânia e Ásia Menor como corredores para a Europa. Deixá-los sob influência russa garante a Pequim retaguarda livre anulando a contenção americana.

É esta visão que explica o desconforto na Europa que observa tudo à distância percebendo que continua fora da sala das decisões. A Europa aparece como espaço mas não sujeito financeiramente indispensável e politicamente dispensável. Este afastamento expõe a fragilidade ontológica do continente incapaz de se afirmar perante uma guerra que o toca de perto.

O que está em causa é a forma como os Estados Unidos organizam o mundo: três polos moldam a história os restantes são peças substituíveis. Ao reequilibrar com Moscovo Washington recupera a geometria kissingeriana mantendo a Rússia fora da órbita chinesa. Esta tentativa tardia revela a crise que atravessa a Ucrânia deixa a Europa de fora e reabre a competição entre impérios .

Nuno Pereira da Silva
Coronel na Reforma

Acerca do autor

Nuno Pereira da Silva

Coronel de Infantaria na Reserva

Adicionar comentário

Clique para comentar