Geral Opinião

A Diplomacia do Caos

As relações bilaterais sempre foram a expressão mais pura da política realista. Nelas reside a essência do poder, a negociação direta, a defesa do interesse nacional e a gestão das inevitáveis assimetrias. Nunca foram relações de igualdade, mas de cálculo e de prudência. O equilíbrio entre os Estados é sempre transitório e o poder, por natureza, desequilibrado.

Com Donald Trump regressou-se a esse realismo sem disfarces, despido da retórica liberal e do conforto das instituições multilaterais. O seu desprezo pelos fóruns internacionais e pelas convenções diplomáticas abriu uma nova etapa, a da diplomacia do caos. Sob a aparência da espontaneidade, reinstalou-se a lógica do poder como confronto direto, feito de pressão, surpresa e ruído. O multilateralismo passou a ser visto como uma limitação e o caos transformou-se em método.

O mundo das relações internacionais nunca conheceu uma só via. O idealismo liberal conviveu com o realismo clássico e mais tarde surgiu o construtivismo, que recordou a importância das perceções, das identidades e das narrativas. Curiosamente, é este último que hoje mais se aproxima da prática política, pois a diplomacia tornou-se uma construção contínua de imagens e interpretações, um palco em mutação onde o sentido é fabricado em tempo real.

O multilateralismo não nasceu do equilíbrio de poderes, mas da vontade de o superar. Foi uma tentativa de evitar a guerra através do conhecimento pessoal entre líderes, da criação de confiança direta e do estabelecimento de canais que dispensassem as mensagens filtradas e interpretadas pelos diplomatas. Essas interpretações, tantas vezes divergentes, contribuíram para o desencadear da Primeira Guerra Mundial. Trump, de forma instintiva, percebeu o poder dessa relação direta. Fala aos líderes, não às instituições. Dispensa os intérpretes e confia na teatralidade do encontro, na força da presença, na química do contacto.

A sua disrupção desconcertou todos os interlocutores, de Kiev a Moscovo, de Bruxelas a Pequim. As palavras contraditórias, o desrespeito pelos protocolos e a imprevisibilidade criaram um ambiente em que ninguém consegue antecipar o passo seguinte. O caos deixou de ser um acidente para se tornar uma estratégia. Cada gesto tem um efeito, e o método está precisamente na ausência de método.

Não estamos a regressar ao equilíbrio de poderes do século XIX. O que se verifica é a tentativa deliberada de destruir esse equilíbrio e, com ele, o multilateralismo que o procurou ultrapassar. A potência dominante, incapaz de impor uma ordem estável, opta por governar o desequilíbrio. Mantém todos em tensão, todos dependentes, todos desorientados. O caos é agora a nova forma de hegemonia, um poder que se afirma pela imprevisibilidade.

Esta diplomacia do caos é simultaneamente destrutiva e criadora. Destrói a previsibilidade e a confiança, mas cria espaço para o improviso e para a força. É uma diplomacia de múltiplos papéis, em que cada decisão é reversível e cada aliança, provisória. A racionalidade é substituída pela teatralidade e a coerência pela necessidade de manter o mundo em movimento.

Vivemos um tempo em que todos jogam em defesa, tentando decifrar a lógica do aparente absurdo. Mas talvez o absurdo seja, afinal, a nova lógica. Trump é o expoente dessa diplomacia. Não quer saber se falam bem ou mal dele. O que lhe importa é que falem dele, constantemente.

Nuno Pereira da Silva
Coronel na Reforma