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“Crónicas de Lisboa”: Mais do que uma boa ação

Naquele sábado de Setembro, usando o meu passe dos transportes públicos de Lisboa, porque andar na cidade de carro, ainda mais na “cidade velha”, é um desafio hercúleo e um desgaste grande, meti-me a caminho para visitar o Panteão Nacional, que nunca tinha visitado, apesar de viver em Lisboa há 63 anos. Aproveitaria também para visitar outros pontos de interesse naqueles lados desta Lisboa de colinas, nomeadamente, o Convento da Graça e Igreja, onde só tinha estado várias vezes no miradouro do adro, donde se desfrutam as vistas da parte central da cidade, os “vales escondidos” do centro velho da cidade e parte ocidental, do castelo, da ponte, etc.

Continuei o périplo de turismo cultural, descendo em direção a sul, da Igreja de S.Vicente de Fora e a Feira da Ladra, muito conhecida dos lisboetas, mas também como ponto turístico da zona do Campo de Santa Clara. Releva-se nela a sua longa idade, pois, segundo os registos, ter-se-á iniciado no longínquo século XII, após a conquista de Lisboa aos Mouros. No atual local, com os registos já mais rigorosos, data de 1882. Apesar da sua tipicidade, para mim, a Feira da Ladra já tem “pouca graça”, mas para os turistas, especialmente os estrangeiros, ela faz parte dos roteiros turístico, tal como toda zona histórica daquela parte da cidade e com vista para a parte oriental e o estuário do Tejo. Pareciam formigas, incluindo os pontos que citei atrás, aliás, em toda a cidade histórica e cidade velha. Dá para observar que há muita gente que poderíamos considerar no chamado “turismo de massas”, mas há as exceções e isso nota-se pelo interesse que demonstram nos monumentos que visitam, bem menos do que seria desejável, mas também os portugueses lhes viram costas, apesar da gratuitidade em muitos museus e monumentos do nosso país. Mas, voltando ao espaço da Feira Ladra, num dos dois dias em que está “aberta” (ela funciona às terças-feiras e aos sábados) era difícil circular, diria com “lotação esgotada”, com os restaurantes e as esplanadas repletos, pois ainda eram cerca das 15 horas e o dia de sol e quente, convidava a isso. Muita gente, mas poucas compras.

Ao passar ao lado duma dessas esplanadas, sem mesas vagas, reparei que estava uma senhora com a cabeça prostrada em cima da mesa e na qual estavam dois copos de sumo, ainda intactos.

Como sou um observador atento em todo o meu redor e em todos os contextos, “defeito” este que me penaliza no meu sistema emocional, senti que algo não estaria bem com ela. Parei a cerca de dois metros e fui observando. Acabou por se aproximar dela outra turista, que soube depois que eram irmãs e tinham chegado a Lisboa no dia anterior, vindas da Califórnia (USA), que trocaram algumas palavras, mas que ouvi apenas a palavra táxi e partiu, mas sem antes fotografar o toldo onde estava o nome do estabelecimento, para ter um identificativo onde deixaria a irmã sozinha. Desceu, a feira quase toda ela está em plano inclinado, à procura de um táxi ou, segundo lhe tinham sugerido ao balcão do estabelecimento, procurar um polícia. Decidi aproximar-me dela para indagar o seu estado e depois de lhe ouvir algumas palavras entendi que era recomendável ligar para a linha de emergência nacional, o número 112, e não esperar que a irmã viesse com um agente da policia ou um táxi. Ambas as demandas se revelaram infrutíferas e regressou de “mãos a abanar”, mas já eu estava em linha com o INEM, reencaminhado pela PSP que opera o número 112 (na minha primeira ligação, durou um minuto e meio, porque eu desliguei). Voltei a ligar e esperei até que atendessem na triagem (feita pela PSP) e depois de trocas de informações, nomeadamente acerca da idade aparente, eventuais sintomas visíveis e localização rigorosa, reencaminharam a chamada para o INEM onde voltei a fornecer todos os dados que iam sendo solicitados, incluindo aqueles que conseguimos, com a ajuda da minha companheira, e que constavam numa pequena pulseira que a paciente usava no pulso. Por exemplo, gravadas as palavras: “brain tumor” (tumor no cérebro); peniciline allergic; diabetic, e outros. Entretanto, tinha regressado a irmã para junto dela, onde estávamos nós, o casal, e disse-lhe que já vinha a caminho a ambulância do INEM. Tinham decorridos sete minutos, nos contactos e a ambulância demorou cerca de quinze minutos mais. Quem conhece a circulação viária naquela zona, por ruas e ruelas velhas e muitas delas estreitas, acredita que seria difícil demorar menos tempo. A espera gerava desconforto na paciente e, obviamente, na irmã e em nós, um estado de impaciência e de emoções, (choro da irmã), aparentemente, mais nova do que a paciente, e com cerca de cinquenta e tal anos. Fomos trocando palavras de encorajamento, mas também de informação do que se seguiria e corroborando que a minha decisão, que foi um gesto unilateral da minha parte, era o mais sensato para aquela situação, ainda mais depois que soubemos que na chapinha no pulso estavam dados importantes da saúde da paciente. A propósito, a PSP tem, desde há anos uma fita para as crianças usarem e, se se perderem, poder a Polícia aceder aos contactos dos seus familiares, em registo no sistema. Também este ano, essa via passou a poder ser usada pelos maiores de 65 anos, porque também os idosos podem perder-se….Eu aderi e, por isso, trago comigo, no pulso, uma chapinha onde se pode ler: “Call/Ligue 112 acrescido dum código alfanumérico”. Através dele e só a Polícia acede aos meus dados, em suporte no sistema criado, referentes ao portador. Aquela chapinha da turista tem as informações explicitas, para além do hospital que a assiste nos USA, enquanto a minha só a PSP acede. Após a chegada da ambulância, ficámos a transmitir aos paramédicos os dados que a irmã nos foi relatando também, lendo eles os dados constantes na chapinha dourada, e depois, já
desnecessários, despedimo-nos e seguimos o nosso caminho. Antes disso, a irmã mais nova pediu-nos os nomes pessoais e o número de telemóvel. Como não ligou e nós não pedimos o seu número, por podermos ser inconvenientes, ficámos sem saber qual o diagnóstico hospitalar e o respetivo seguimento médico. 

Demos continuação ao nosso périplo turístico na zona. Contudo, a minha alma ficou inquieta, muito inquieta, não só pelo que descrevi, mas por outras ilações que se podem extrair, nomeadamente: i) o desconhecimento de muitos portugueses em como agir nestes casos de suspeição de doença, pois alguns comerciantes disseram à turista para ir buscar um táxi ou um policia em vez de ligarem 112, ele direcionado para a PSP que depois fará o encaminhamento para o INEM, os Bombeiros, a parte operacional da policia, etc; ii) agir, mas agir rápido e ser claro nos dados que se transmitem e responder às perguntas dos operacionais, pode ser VITAL; iii) um comodismo de quem observa um facto, como aquele, ou um homicídio, agressões, etc. e não AGE; agora mais facilmente se fazem vídeos ou fotos
do que ligar 112; iv) pela “amostra” das muitas pessoas em redor e que viam ou poderiam ver o estado daquela turista e não agiram, podemos pensar na “lei” da psicologia social designada por “Efeito do Espectador” ou efeito Genovese, baseada num assassinato, numa noite e numa rua de Nova York, nos anos 60 de Kitty Genovese, em que várias pessoas viram e ouviram os gritos de socorro, por dentro das suas janelas e varandas, mas não intervieram, esperando que alguém o faria, acabando ela por falecer por falta de assistência. Os psicólogos concluíram que quantas mais pessoas presenciarem episódios deste tipo (logo a possibilidade de ajuda desse número de pessoas), menor é a probabilidade de ser socorrido. Querem exemplos? E não me refiro à loucura de filmar em vez de agir. Eu AGI
assumindo o “desconforto”, tal como já o fiz em muitas outras situações, desde que tenho telemóvel, mas com a alma preenchida, mas “dorida”, porque ainda hoje, decorridos alguns dias, revejo o “filme” e o “contágio da dor – compaixão”, que em mim perdura. Fazer o bem, e ele tem mais valor quanto mais “exigir” de nós fazê-lo, é uma das missões dos seres humanos. Até alguns animais de estimação o fazem, que não alguns dos seus donos.

Serafim Marques – Economista (Reformado)