Foi há alguns anos, no final de uma reunião do Subworking Group da EUROFOR, da qual era co-chair, que tive a oportunidade de visitar a rota dos vinhos de Bordéus. Terminados os trabalhos na cidade, a organização proporcionou-nos um percurso por alguns dos mais prestigiados châteaux da região.
Portugal já produzia, à época, vinhos de qualidade, mas ainda não correspondia, em termos gerais, aos padrões exigidos pelos consumidores do mercado global um mercado exigente, sofisticado e então claramente liderado por França.
Durante a visita aos grandes produtores da região, tive o privilégio de provar vinhos de exceção. Fiquei particularmente impressionado com a competência e o entusiasmo dos maîtres de chai (mestres de adega), que explicavam com detalhe e paixão as suas escolhas na mistura de castas o famoso blending procurando sempre alcançar equilíbrio, profundidade e distinção.
Curiosamente, apesar das explicações entusiásticas e muito bem construídas, confesso que, após várias provas comparadas, as diferenças entre vinhos da mesma gama me pareceram mínimas. Todos eram excelentes. O que verdadeiramente mudava era a história contada. Cada casa apresentava o seu património, o seu brasão, as suas lendas, o rótulo desenhado com esmero, a paisagem envolvente, o tom de voz do anfitrião.
Percebi, então, que o consumidor global não compra apenas o vinho. Compra o contexto, a memória, o prestígio. Compra a cultura. Um marketing subtil, eficaz e refinado com o qual Portugal, à época, pouco podia competir.
Anos depois, ao regressar a Portugal e acompanhar a evolução do setor, fui constatando com satisfação uma transformação profunda. Para além do Douro cuja tradição remonta ao Marquês de Pombal, com a criação da primeira região demarcada do mundo, outras regiões foram sendo redescobertas, valorizadas e internacionalizadas. Alentejo, Dão, Bairrada, Tejo, Setúbal, e mais recentemente os vinhos do Pico ou de Trás-os-Montes, afirmaram-se com identidade própria.
Hoje, temos vinhos que se comparam, sem embaraço, aos melhores franceses. Em provas às cegas, os resultados são frequentemente surpreendentes. O que continua a faltar, em muitos casos, é o mesmo nível de preparação na receção cultural e turística: as chamadas rotas do vinho existem no papel, mas poucas estão verdadeiramente preparadas para receber visitantes com o grau de profissionalismo, estética e narrativa que encontramos em Bordéus. Há exceções notáveis mas não são ainda a regra.
Curiosamente, também entre nós, os vinhos de excelência mesmo quando resultantes de castas e blends distintos começam a apresentar perfis muito semelhantes. Em conversa com um amigo, grande produtor nacional, ele disse-me algo revelador:
“Hoje, o que interessa é fazer um vinho neutro. Não importa tanto a casta, mas sim o perfil sensorial. Usamos leveduras selecionadas, controlamos o processo com precisão química, e conseguimos produzir vinhos que reproduzem fielmente os perfis de referência que o consumidor procura.”
A afirmação ficou-me na memória. Os grandes mestres do blending são hoje os novos mixordeiros não no sentido antigo e pejorativo do “vinho a martelo”, onde se usava quase tudo menos uva, mas numa versão moderna, tecnológica e higienizada. Em vez de aldrabar, replicam. Em vez de improvisar, reproduzem com culturas de leveduras específicas, fermentações controladas e maturações ajustadas ao gosto dominante.
Entrámos na era do vinho-formato: eficaz, agradável, bem feito mas por vezes sem alma.
E talvez, por isso mesmo, o maior desafio dos nossos produtores não esteja apenas na vinha nem na adega, mas na autenticidade da história que escolhem contar.
Porque o mundo continua a gostar de ouvir boas histórias à mesa e não há decantador que substitua uma narrativa bem servida.
Nuno Pereira da Silva
Coronel na Reforma

Adicionar comentário