Todas as guerras têm, no mínimo, duas versões. Duas narrativas em confronto, que os lados envolvidos tudo fazem para alimentar — por vezes com recurso à desinformação — na tentativa de conquistar apoio internacional ou mobilizar a opinião pública interna.
Como dizia Aristóteles, o caminho do meio tende a ser o mais razoável, pois cada parte representa um extremo. E Hegel, na sua dialética, lembrava que da oposição entre tese e antítese resulta uma síntese — uma compreensão mais próxima da verdade.
A guerra em Gaza é exemplo paradigmático desse embate entre versões, onde a propaganda de ambos os lados ofusca o essencial: o sofrimento humano. Ainda assim, há factos que não podem ser ignorados.
O conflito israelo-palestiniano remonta à criação do Estado de Israel, em 1948. Os palestinianos, sem um Estado reconhecido e sem forças armadas regulares, têm recorrido à guerrilha como forma de luta pela autodeterminação. Gaza e a Cisjordânia continuam a ser territórios ocupados, facto reconhecido pela comunidade internacional e pelo direito internacional.
O Hamas, hoje classificado como organização terrorista por diversos países, foi inicialmente incentivado — ou pelo menos tolerado — por Israel, como forma de dividir o campo palestiniano e enfraquecer a Autoridade Palestiniana (Fatah). A realidade cobrou esse erro estratégico.
O conflito atual começou com um ato terrorista hediondo do Hamas, em 7 de outubro de 2023, que causou centenas de mortes e o sequestro de civis israelitas, muitos dos quais permanecem em cativeiro. Esse ataque não pode ser relativizado.
Mas também não pode ser ignorado que, desde então, Israel tem conduzido uma campanha militar de larga escala sobre Gaza, com consequências devastadoras. A ausência de jornalistas independentes no terreno — impedidos de entrar pelo próprio Estado de Israel — permite que todas as imagens, números e testemunhos sejam objeto de suspeição. Israel rejeita os dados divulgados por fontes palestinianas, e há semanas que deixou de atualizar o número de vítimas.
Contudo, as imagens de satélite — não manipuladas por nenhum dos lados — mostram um território praticamente arrasado. A destruição do edificado sugere um número elevadíssimo de mortos. Além disso, a população civil tem sido privada de alimentação, água e cuidados médicos, estando em risco real de morte por fome ou doença.
Quem é responsável? Provavelmente ambos os lados. Mas os civis não têm culpa.
A doutrina clássica da guerra de guerrilha reconhece que os combatentes se integram na população civil, tornando difícil distingui-los. Mas a conclusão — tantas vezes aplicada na prática — de que “na dúvida, todos são culpados” é uma simplificação perigosa, que conduz a massacres. E os massacres não são admissíveis. Nem hoje, nem nunca.
É por isso que, apesar de o Hamas ainda manter reféns, e ter a obrigação moral e política de os libertar, é urgente parar o conflito. Não há legitimidade para continuar a punir coletivamente mais de dois milhões de pessoas. Israel, por seu lado, deteve centenas de palestinianos sem culpa formada — a única diferença é que não lhes chama reféns porque o faz sob a capa da legalidade estatal.
Infelizmente, Israel segue um caminho político cada vez mais autoritário, com tendências autocráticas visíveis na sua vida interna: erosão do poder judicial, discriminação institucionalizada e instrumentalização do medo. Uma deriva que ecoa, em muitos aspetos, a evolução recente dos próprios Estados Unidos.
O momento exige mais do que denúncia: exige ação diplomática.
É preciso reabrir o caminho do direito internacional e do reconhecimento mútuo. A segurança de Israel não se garante com a destruição da Palestina. E a viabilidade de um Estado Palestiniano não pode depender da existência do Hamas.
A solução duradoura será sempre política. Passa por uma paz negociada, com mediação internacional credível, com garantias para ambas as partes e com coragem — de dentro e de fora — para romper o ciclo da vingança.
Enquanto isso não acontecer, Gaza será, mais do que o símbolo de uma guerra, o retrato vivo da falência moral da comunidade internacional.
Nuno Pereira da Silva
Coronel na Reforma

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