Geral Opinião

Entre Ilhas e Silêncios: A Singularidade da Arte São-Tomense

A arte são-tomense, embora muitas vezes esquecida no panorama africano e lusófono, possui uma identidade profundamente enraizada na complexidade da sua formação cultural. Ao contrário de outras expressões artísticas do continente africano, São Tomé e Príncipe desenvolveu uma linguagem visual própria, fruto de um cruzamento invulgar de influências: o legado português herdado do colonialismo, a presença invisível mas determinante dos angolares, e a marca da herança cabo-verdiana introduzida por políticas migratórias salazaristas.

Diferente do que ocorreu em países como Angola, onde o pós independência viu um retorno enfático ao imaginário tribal e à estética “africanista”, os primeiros artistas são-tomenses tomaram outro rumo. A sua produção foi, desde cedo, mais introspectiva e lírica, marcada por uma tensão latente entre referências europeias e uma matriz africana muitas vezes diluída ou esquecida — resultado da insularidade e da longa colonização.

Há, no entanto, exceções marcantes. Plácido Vicente, por exemplo, foi dos primeiros a inserir na escultura são-tomense elementos do universo Bantu, que conhecera no Gabão. A sua obra representa um ponto de viragem: uma tentativa consciente de reconexão com uma ancestralidade perdida, num espaço cultural mestiçado.

A singularidade da arte são-tomense também se revela na apropriação de tradições teatrais europeias como o Tchiloli e o Auto de Floripes. Embora baseadas em narrativas ibéricas medievais, essas peças foram assimiladas ao ponto de hoje serem património cultural vivo. Representações que, embora importadas, foram ressignificadas, tornando-se espelhos profundos da identidade são-tomense.
Entender a arte contemporânea das ilhas implica olhar para três eixos fundamentais:
        •       Os angolares, grupo cultural isolado e resistente, que representa talvez a camada mais genuína da alma africana do arquipélago, mas ainda pouco explorada;
        •       A presença cabo-verdiana, importante na formação da sociedade local, mas geralmente ausente das narrativas por não encarnar uma “África tradicional”;
        •       A influência estética soviética, especialmente visível nas décadas após a independência, quando o realismo socialista moldou temas como a dignidade do trabalho, o nacionalismo revolucionário e o heroísmo coletivo.

É nesse entrelaçar de silêncios, legados e vozes perdidas que reside a verdadeira riqueza da arte são-tomense: uma arte de síntese, feita de tensões criativas e memória fragmentada. Para os artistas do presente, a busca por raízes passa tanto pelo continente africano quanto por Cabo Verde, Portugal e até pela antiga pedagogia visual soviética. O desafio é imenso, mas é nesse percurso que a arte são-tomense poderá afirmar-se como um espaço autónomo, com uma voz própria no seio da lusofonia e da África insular.

Nuno Pereira da Silva
Coronel na Reforma

Acerca do autor

Nuno Pereira da Silva

Coronel de Infantaria na Reserva

Adicionar comentário

Clique para comentar